Reportagem
veiculada no Site www.aclimacaosp.com.br
(1º
Semestre - 2002)
À
primeira vista, é o bigode de Ionaldo Cavalcanti que denuncia
a presença do artista no senhor alto e moreno, de modos afáveis.
É um bigode que tem as pontas viradas para cima, o que remete
diretamente ao excêntrico Salvador Dalí. Entrando no apartamento
de Ionaldo na Rua Correia Dias, no entanto, os sinais se multiplicam,
com os muitos quadros espalhados pelas paredes. Entre a fartura
de obras pintadas por amigos de São Paulo e do Recife, sua terra
natal, estão algumas assinadas pelo próprio Ionaldo: óleos, que
sempre levam cores fortes, e alguns bicos-de-pena de técnica preciosista.
Em seus 67 anos, Ionaldo Andrade Cavalcanti alimentou várias paixões
artísticas. A primeira delas, ainda criança, foi a história em
quadrinhos. A segunda, as artes plásticas, e a terceira, a Música
Popular Brasileira. Ao contrário da maioria das pessoas, no entanto,
ele foi muito além do hobby nas três áreas. Apesar de ter batido
ponto em empregos durante toda a sua vida profissional, nunca
abandonou a pintura, transformando-se em um artista respeitado,
com inúmeras mostras individuais e coletivas no Brasil e exterior.
A quitinete onde há 30 anos funciona o seu ateliê, na região da
Bela Vista, recorda ele, foi adquirida com o pagamento de um mural
para o Hotel Hilton.
Ionaldo teve mais sorte que muitos artistas que só tiveram seu
talento reconhecido tardiamente. Desde o início da carreira, sua
pintura figurativa repleta de casas, naturezas mortas e janelas
- figura recorrente - estilizadas e coloridas foi admirada. A
boa aceitação de público e crítica, no entanto, de maneira alguma
significa menos inquietude na alma do artista. "Os quadros nunca
saem como eu queria inicialmente. É uma constante insatisfação,
e eu sempre prometo que no próximo vou acertar", diz, apontando
uma faixa roxa que corta um quadro dominado pelos tons de verde.
"Acho que ficou muito forte, me incomoda".
Precoce
O pintor nasceu no Recife em 1933, filho de pai cabeleireiro e
mãe dona de casa. Sua veia artística manifestou-se primeiro com
os quadrinhos, paixão que da leitura evoluiu para o desenho, na
adolescência. Foi quando seu irmão mais velho, jornalista, o apresentou
ao mundo artístico e boêmio. Freqüentando locais como o Departamento
de Documentação e Cultura, Ionaldo travou contato com intelectuais
e artistas como Darel Valença, considerado por ele o maior desenhista
do país.
Em 1948, aos 15 anos, Ionaldo já estava envolvido na organização
do 3º Salão de Arte Moderna do Recife, que não acontecia desde
1936. A partir daí, foi criada a Sociedade de Arte Moderna do
Recife, e, em 1952, o Atelier Coletivo, com um grupo de 10 a 15
artistas que partilhava o mesmo espaço - uma casa alugada com
o auxílio da Assembléia Legislativa -, onde além de desenvolver
seu próprio trabalho, ministravam cursos gratuitos à população.
Por lá passaram artistas como Armando Lacerda, José Cláudio, Marius,
Reynaldo Fonseca, Augusto Reinaldo, Hélio Feijó, Abelardo Da Hora,
entre outros. O Atelier Coletivo funcionou até 1958. Naquele ano,
Ionaldo, que há algum tempo dividia-se entre a pintura e trabalhos
na área de publicidade, ganhou o Prêmio Aquisição do Salão de
Arte do Museu do Estado de Pernambuco.
São Paulo
Em 1959, recém-casado com Zuleide, foi convidado por um amigo
a vir para São Paulo participar da reformulação gráfica do jornal
Última Hora, de Samuel Weiner. Ficou no jornal até 1964, quando
este foi fechado pelo regime militar. Desde 1962, no entanto,
o pintor, que mantinha ateliês com outros artistas na cidade,
dividia seu tempo entre o jornal e a Editora Abril, onde ficou
por 12 anos, na direção de arte das revistas técnicas, e depois
de educação. Nesse período, também participou de duas edições
da Bienal de São Paulo, em 1969 e 1971.
De 1974 a 1985, Ionaldo trabalhou como free-lancer e participou
de vários salões de arte pelo país, e depois, de 1985 a 1996,
cumpriu sua última jornada em uma empresa, trabalhando no D.O.
Leitura, um tablóide cultural editado pela Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo. Aposentou-se, mas continuou mais ativo que
nunca na pintura. O artista conta que a produção é constante e,
se por um lado demora até 15 dias para terminar uma obra, já que
usa a superposição de cores, por outro lado está sempre trabalhando
em várias telas simultaneamente. Mantém um cavalete no pequeno
ateliê da Bela Vista, onde vai praticamente todos os dias, e outro
em casa. Com a saída dos dois filhos (o filho é advogado e músico,
e a filha, botânica) de casa, o apartamento onde vive há 32 anos
com Zuleide ficou espaçoso o suficiente para abrigar um segundo
estúdio.
Super-heróis
& MPB
E os quadrinhos, paixão primeira? Apesar das várias atividades
paralelas, Ionaldo sempre encontrou tempo para se deleitar com
seus heróis e personagens preferidos, de Flash Gordon ao Príncipe
Valente. Também dedicou-se à pesquisa e à leitura sobre o assunto.
Os resultados dessa dedicação são dois livros que viraram referência
para estudantes, profissionais e estudiosos: O mundo dos quadrinhos,
lançado em 1977 pela Editora Símbolo, e Esses incríveis heróis
de papel , que saiu em 1985 pela Editora Mater. Ao lado de
figuras indispensáveis, como Batman ou Fantasma, personagens que
estavam em sua memória há muito tempo finalmente puderam ser apresentados
aos jovens leitores nas duas obras. Alguém já ouviu falar em O
Vingador, de Bob Fuje? Em 2000, sua cobiçadíssima coleção com
mais de seis mil revistas foi doada para uma gibiteca em Recife.
"É a minha terra, tinha que ir para lá", justifica Ionaldo.
A mais recente paixão, à qual ele se dedica há oito anos, é a
compilação de canções de autores de MPB de todos os tempos, de
Lupicínio Rodrigues e Cartola a Carlinhos Brown e Antônio Cícero.
Dentro de pequenas capas organizadas em ordem alfabética, folhas
com as letras, caprichosamente transcritas a mão. Uma parte é
fruto de pesquisa, outra Ionaldo tirou da memória. Já estão relacionados
mais de cinco mil compositores e 17 mil canções. O artista plástico
ainda não sabe o que fazer com o material, mas dali provavelmente
sairá mais alguma preciosa contribuição à memória cultural nacional.
Aclimação
A maior ligação de Ionaldo com a Aclimação está no Parque. Há
12 anos, desde o tempo em que trabalhava na Imprensa Oficial,
ele habituou-se a acordar às 6h30 para caminhar, rotina que continua
seguindo religiosamente. Lá, fez amizades que duram até hoje,
alimentadas por muito bate-papo na pista de cooper: Antônio Vituzzo,
Luiz Trevelin, Nelson Bavaresco, Archangelo Ianelli, Adão Ishida,
João Soto, a maioria deles ligados de alguma maneira às artes.
Escultores, pintores, músicos, artistas gráficos. Mal sabem os
freqüentadores do Parque que por ali circula todas as manhãs um
verdadeiro reservatório cultural.
Reportagem e texto: Nilva
Bianco